segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Primeiros Registros, me situando ...


Nasci no ano anterior ao encerramento da Segunda Guerra Mundial, 1944, no dia em que se festeja a Justiça e o Dia do Estudante e seu célebre calote nos restaurantes. Sou bisneta de avós portugueses casados com mulheres do interior paraense, como era costume na época, de acordo com trabalhos de Cristina Cancela e Daniel Barroso sobre casamentos portugueses em uma capital da Amazônia. Contam eles que registros do recenseamento de 1872 e de 1920 demonstram  que 12% e 7,5% respectivamente  das pessoas morando em Belém eram estrangeiras, com 80% destas no primeiro caso e 68% no segundo, sendo de origem portuguesa. Em relação a gênero, do total de homens portugueses, no período de 1908 a 1920, apenas 25% casou-se com uma conterrânea, havendo nítida preferência por mulheres paraenses, geralmente vindas do interior. Possivelmente por serem mais brejeiras, mais amorosas e sabendo preparar deliciosos pratos.
Meus pais tiveram sete filhos, de acordo com a média, na época. Os três primeiros com intervalo de um ano mais ou menos entre nós, depois de passados cinco anos vieram mais quatro. Apenas duas mulheres, eu no primeiro grupo dos três e minha irmã, Lena, no segundo grupo dos quatro. Meu pai falava que gostaria de ter tido um time de futebol, onze filhos homens. Mais tarde, creio que mudou de opinião, quando percebeu o cuidado e carinho mais próximo das mulheres. Amava meu pai, sem questionamentos e julgamentos, ainda que percebesse ou ouvisse histórias de seus deslizes como marido e seu excesso de autoridade em nossa fase da infância e adolescência. A vida lhe atribuiu responsabilidades para com outras crianças e jovens, irmãos, sobrinhos e cunhadas, que deve ter contribuído para seu excesso de zelo e vigilância para conosco.
Se de um lado esse excesso nos tolia e de certa forma aprisionava, de outro, procurava ele compensar levando-nos a passear, a ir ao cinema quase que diariamente.  Já eu casada, comentou certa vez, que saíamos com frequência para eu não ter tempo de pensar em namorar. Nesse sentido, funcionou, pois tive meu primeiro namorado, meu primeiro beijo, já com 18 anos e cursando faculdade. Não que amores platônicos não tivessem ocorrido antes, com vizinhos, primos e amigos. Situação inimaginável hoje.
Cinema quase toda noite, se não era época de prova. Olímpia, inclusive vesperais de sábado à tarde, Independência, na Magalhães Barata, Moderno, Nazaré, Iracema e Poeira, ao redor do Largo de Nazaré e mais tarde o Cine Palácio na esquina da Manoel Barata com a Presidente Vargas, no térreo do Edifício Palácio do Rádio. Muitas vezes íamos só nós dois. Mamãe não curtia muito e ficava com os outros filhos, quando o filme era proibido para menores. Algumas vezes, meu pai levava para passear meus primos, que cedo ficaram órfãos e meus  dois irmãos mais velhos. Sentia-me como a Branca de Neve com os sete homenzinhos, não anões, passeando no Bosque, conforme registrado na foto.

Tio, primos e irmãos passeando no bosque. Da esquerda para direita: tio Adriano Gomes, os primos Rafael Luiz, José Afonso, Joãolino e Pedro Malaquias e os irmãos Pedro José, Auriléa e Antonio Rafael.

Do lazer de minha infância que ficaram registrados em minha memoria destaco as brincadeiras com vizinhos nas calçadas da Av. São Jerônimo; os cinemas; meu álbum de artistas, com lugar de honra para meus amores infantis, Gregory Peck, Tyrone Power, Marcelo Mastroiani, Paul Newman, Rock Hudson e Alain Delon, entre outros; na quinzena da festa do Círio, o Arraial de Nazaré e seus brinquedos maravilhosos, com registro para o Carrossel, conforme minha foto com meu pai e, na época, meu irmão mais novo, Antonio Rafael, os que circulavam apitando com o nome dos clubes de futebol, a roda gigante e os jogos de sorte e tiro ao alvo.
Pedro Gomes com seus filhos Auriléa e Antonio Rafael no Carrossel do Arraial da festa do Círio de Nazaré.

As barracas de comida com pratos regionais , depois, nossa alegria. Na época o destaque maior era pra tartaruga que ainda não tinha sua comercialização proibida. Com toda a variedade de pratos que oferecia, sarapatel, feito dos miúdos e sangue; sarrabulho, uma farofa com raspas do material do casco; picadinho e guizado com batatas. Várias vezes, quando criança e adolescente, assisti a morte cruel deste quelônio, que tinha um arame enfiado pelo rabo, para espixar o pescoço que então era degolado, ficando a pulsar, como se ainda houvesse vida naquela cabeça, enquanto o sangue era aparado para compor o prato de sarapatel. A torcida era grande para que a tartaruga estivesse cheia de ovos, que poderiam estar ainda sem casca ou já completamente formados, a serem cozidos e disputados pelo delicioso sabor que apresentavam.  Também fazia sucesso o casquinho de muçuã, um pequeno quelônio, jogado vivo na panela, com água fervente, para
depois ter sua carne tirada do casco, com todo cuidado pra não deixar estourar o fel que amargaria a carne e que era servido no próprio casco devidamente limpo, coberto com deliciosa farofa. Nas barracas, se pedia com cuidado um casquinho de muçuã, com desconfiança pra não comer outra carne, inclusive bucho bovino, que muito bem temperado poderia passar pelo quelônio. Outros pratos cobiçados eram o casquinho de carangueijo, o pato no tucupi, o tacacá e outros sabores regionais maravilhosos. Já na adolescência, o que mais gostava era circular na praça e ser observada pelos rapazes que ficavam parados vendo as moças desfilarem ao som das músicas tocadas pelas bandas nos belos “quiosques” das esquinas e ir assistir aos shows de humor que ocorriam nos palcos da Rádio Marajora e do Cinema Moderno, que eu me lembre. Para cada noite, um vestido novo. E quase sempre, papai estava por perto!
No início da década de 80, o Largo de Nazaré é reestruturado para dar origem ao Largo Santuário, ficando separado em um terreno ao lado os componentes do antigo arraial, em uma provável tentativa de separar o religioso do profano. As pessoas que não viveram aquela época do Arraial de Nazaré não podem imaginar a diferença do que é hoje em relação ao parque de brinquedo do CAM. Em busca de uma religiosidade e com desculpas de maior higienização, acabaram com um símbolo da cultura da quinzena da Festa de Nazaré que não se reduzia à trasladação e ao Círio e era um festejo religioso e profano, mobilizando por quinze dias a capital e o interior do Estado

Arraial de Nazaré na praça Justo Chermont, antes de ser reestruturado na década de 80.

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