quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Os Casarões da Minha Vida - Antônio Jorge Abelem, um direitista?



Eu e Antônio Jorge tínhamos uma relação de cumplicidade intensa, não sem conflitos, no amor, na família, no lazer e no trabalho. Lembro quando, na década 70 viajei para Soure com uma equipe do IDESP para pesquisa de campo e no final de semana chega ele e Wilson Souza, na primeira foto, compartilhando de momentos de lazer na praia de Pesqueiro. A ajuda sempre foi mútua!
Minha participação em relação a sua trajetória profissional, no meu olhar, se fez sentir principalmente quando por duas vezes o pressionei para mudar de foco. A primeira foi não mais tratar de recuperação de terrenos ocupados, reintegração de posse dos terrenos da Sacramenta, quando eu pesquisava e defendia a Luta pela Moradia Urbana, isto no início da década de 80. Na época desenvolvia a pesquisa para minha dissertação de mestrado sobre o remanejamento da população do Igarapé São Joaquim para o Conjunto Providência e em um seminário sobre a questão de moradia popular, no NAEA, Januário Guedes apresentou um filme curta metragem sobre o problema na Sacramenta, citando o escritório Abelem como responsável pelos processos de reintegração. Lógico que houve certo mal estar da minha parte! Convenci Antônio Jorge a desistir de levar adiante os processos e considerar a contradição destas ações com o meu trabalho e o meu posicionamento sobre a questão. A segunda influência foi em defesa de sua saúde.



 A Adega do Rei, já no prédio da antiga União Espanhola, passa a apresentar problemas de roubo e de ameaças de violência, com a chamada turma da Bailique, jovens que frequentavam bares e criavam desordem. Apesar dos momentos agradáveis, a segunda Adega tinha perdido no decorrer do tempo, o encantamento da primeira, quando nos jardins do casarão de meus pais. Insisti que fechasse, para ter sossego e relaxar pelos menos nos fins de semana. Por outro lado, os trabalhos de maior responsabilidade no escritório de advocacia era eu que digitava, já que ele não lidava com computador, e fazia a devida revisão. Assim, conheci os meandros da advocacia e o vai e vem dos processos, em que para cada argumentação que você, leigo/leitor, considera vencida, vem outra e outra subsequente derrubando a anterior. Aprendi o que significa na advocacia a assertiva de “advogado do diabo”. Se você defende seu cliente, você busca argumentos que provem que ele está certo, que ele está com a razão, mesmo que não esteja. Abelem era bom nisso, era bom de briga! Funcionou como advogado do Grupo Líder/Nazaré, do grupo de Lojas Massoud e tantos outros, comerciantes. Mas também ajudou muita gente que não podia pagar e que atendia de graça. Transitando facilmente entre esquerda e direita, Abelem tinha valores e princípios que para mim o colocavam em uma dimensão social e humanitária em muitas de suas atitudes. No tempo em que se percebia dicotomicamente as posições assumidas pelas pessoas, direita/esquerda, olhar revivido hoje, se você não está comigo está contra mim, Abelém era considerado de direita, por ser comerciante e ter um pequeno capital e depois ser advogado de muitos empresários, mas ele de coração, de atitudes, talvez fosse mais de esquerda, no sentido de mais humano, mais inclusivo, do que muitos que mantinham essa posição no discurso, mas não na prática. Daí eu sentir um certo desconforto quando alguns dos amigos o rotulam em seus textos sobre o golpe militar de “o direitista Antônio Abelem”. Exemplo emblemático é o da ajuda permanente que deu à filha de uma empregada de sua família, que foi criada por eles e que quando ele adoeceu deu entrada em um pedido de reconhecimento de paternidade, com a justificativa perante o juiz que só sendo seu pai para tê-la ajudado tanto, ser tão bom com ela. O exame de DNA negou tal possibilidade.
Mesmo para seus clientes em questões comerciais ou trabalhistas, eu comentava com ele que não sabia cobrar. Acostumado a labutar no comércio, a dar preço a mercadorias, calculando seus impostos e lucros, ele não sabia cobrar seu bom trabalho intelectual. Sem ser rico, mas sendo muito empreendedor, Abelem ajudava seus amigos como os colegas da universidade perseguidos, minha família que foi à falência e outros amigos e empregados. As fotos mostram suas lojas de porte médio, a matriz na esquina da Rua 28 de setembro com a Benjamin Constant e a filial na Boulevard Castilho França, esquina da Oriental do Mercado, que registra nossa última trasladação vista da loja, como fazíamos todo ano, confraternizando com amigos e empregados.





A partir de 1991, Abelém começa a apresentar problemas de saúde. Logo após a morte de meu pai, evidencia-se a necessidade de uma cirurgia cardíaca para colocação de uma válvula aórtica. Pressionada por este fato e mais as ameaças do governo Fernando Henrique sobre as conquistas trabalhistas nas IFES – Instituições Federais de Ensino Superior, em 1996 solicitei aposentadoria da UFPA, na mesma época em que ele fez a cirurgia de coração com pleno êxito. 
Final de 2000 surge o terrível diagnóstico de um tumor benigno no cérebro, cuja cirurgia, em março de 2001 foi feita em São Paulo, no Hospital Albert Einstein, com intercorrência de infecção hospitalar e necessidade de uma correção no circuito elétrico cardíaco. Foram terríveis 30 dias entre o Einstein e o INCOR. Abelem nunca mais foi o mesmo. 
Os amigos apareciam no início, mas aos poucos suas visitas foram rareando. Diziam ficar constrangidos de encará-lo em tal situação, desconhecendo o bem que uma visita amiga proporcionava. Não era o caso do compadre e amigo Dr. Failache sempre presente, nestes oito anos. Considerava-o meu porto seguro, orientando o que fazer nos momentos difíceis que atravessamos. Ainda assim, mensalmente, antes da piora final, eu organizava um café com amigos para reuni-los em nossa casa.
Supervisionei a loja da Boulevard por um ano tentando salvá-la das dívidas enormes que tinham se acumulado. Não conseguindo ela foi fechada e o ponto e seu saldo vendido. Indenizei todos os empregados, inclusive gerente com 20 anos de casa. Nenhum recorreu à justiça. Consegui fazê-lo vendendo peças antigas da casa e as minhas joias mais valiosas, presentes de meu pai e de meu marido. Sem pena, agradecendo ter do que lançar mão para enfrentar os desafios dos impostos do comércio e de encarar os custos de sua doença.
Em 2005 organizei a festa de seus 70 anos, no sentido de louvar a vida e tê-lo ainda entre nós. Ele estava feliz, reunindo familiares, vizinhos e amigos. Da turma de 64 compareceram, Ronaldo Barata, Leonildes Silva e JJ Paes Loureiro, conforme se vê em foto.




Quando ele adoeceu me descobri uma mulher forte e capaz de dar a ele o apoio necessário emocional e financeiro, como ele havia dado a tantos, inclusive a meu pai.
Abelém morreu em 2009, vítima de um enfarto que veio em seu socorro para evitar maiores sofrimentos que as doenças degenerativas provocam. Era uma segunda-feira gorda! A cara dele, morrer no carnaval! Deixou-me muitas lembranças, muitos ensinamentos e a certeza de ter convivido com um parceiro que tinha um coração apaixonado, solidário e cristão. Isto é ser de direita?

2 comentários:

  1. Não! A meu ver, essa é a única resposta cabível, Aurilea, às perguntas que você faz no título e ao final do seu texto. Embora sem nunca ter desfrutado da intimidade do Abelem, com ele convivi com certa proximidade, no movimento estudantil, ele universitário, eu secundarista participante de uma montagem teatral do Departamento de Arte Popular - DAP da União Acadêmica Paraense - UAP, em Belém, antes do golpe de 1964. Além de percebê-lo ponderado, respeitador e respeitado, naquele tempo em que as divergências não impossibilitavam, ao contrário, animavam o debate político, já anos depois eu soube de um fato que mais o dignifica, o socorro que ele prestara a uma pessoa sob perseguição dos golpistas, pouco depois que estes tomaram o poder. Por terceira via, tomei conhecimento de que ele havia ajudado um jovem, que, acusado de subversão, estava sendo vítima do regime militar. Sem familiares em Belém e com atividade profissional impossibilitada pela continuidade da repressão, o moço era evitado por muitos, e não tinha sequer pouso certo para dormir. Abelem abrigou-o em um escritório, onde o rapaz passou a pernoitar, e ajudou-o financeiramente. Naqueles terríveis idos, ajudar alguém maldito pelos militares no poder implicava risco de se tornar outro maldito. Foi nessas circunstâncias que Abelem realizou esse ato, e possivelmente outros atos, de admirável prática política solidária. Ele nunca usou isso para credenciar-se publicamente, muito menos como pretensa capacitação para atribuir a outrem rótulo político pelo aparente. Parece-me traço característico do Abelem, além da ponderação e da solidariedade, a discrição. Sei que a pessoa amparada quando era perseguida manteve-se grata a ele, e se aqui me abstenho de declinar-lhe o nome é porque não me arvoro a fazer o que ela própria, ao que eu saiba, não fez, provavelmente para corresponder ao recato requerido pela personalidade do Abelem. São de todo procedentes suas palavras, Aurilea: "Transitando facilmente entre esquerda e direita, Abelem tinha valores e princípios que (...) o colocavam em uma dimensão social e humanitária...".

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  2. Obrigada pelo registro, Avelino V. do Vale. Sei desse fato e de outros que companheiros do escritório, montado para e por eles, narraram em livro. Mas nem todos, como bem registras. Era sua prática. Abelem fazia-o naturalmente, não se gabava nem cobrava reciprocidade. Ele me faz muita falta, mas ensinou-me e ajudou-me a preparar-me para viver sem sua presença física. Mais uma vez obrigada por seu testemunho!

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