quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Um olhar adulto revendo a infância no Casarão 28

Antonio Jorge e Cassius Abelem em frente à maloca construída no quintal do casarão 28 para reuniões na Copa do Mundo de 1974
É inevitável na época do carnaval reler emocionada o texto que Bruno Vieira postou em seu Blog em fevereiro de 2010 e enviou para o e-mail de seu amigo de infância, meu filho Cassius, sem lembrar que o pai dele, Antônio Jorge Abelem, tinha falecido exatamente no ano anterior, em uma segunda-feira gorda. Cassius reenviou para mim o texto do amigo, intitulado “Fagulha, pontas e agulhas e a “casa” da família Abelem".
Na época, em grave crise financeira, estávamos, eu e meus dois filhos, estudando a possibilidade de vender o casarão. Eu, morando sozinha, em uma casa enorme, situada em uma rua do bairro do Reduto, sem segurança, com poucos vizinhos residentes, vazia nos fins de semana e feriados. Casa, rua e bairro embebidos em recordações de quarenta e hum anos de vivência, dos quais oito enfrentando dificuldades de combate à doença degenerativa do chefe da família, diagnosticada de forma avassaladora e agravada depois por uma infecção hospitalar na UTI do melhor hospital da América Latina, Albert Einstein, que abalou sua saúde, a vida de nossa família e de suas irmãs e cunhados. Além disso, o morar no casarão exigia uma despesa enorme para sua manutenção, do telhado ao porão. Estávamos estudando as possibilidades, ainda que doesse o coração, de nos desfazer do imóvel. Fomos percebendo pouco a pouco que apesar de linda e espaçosa nossa casa era avaliada no mercado imobiliário por muito pouco se comparada com um apartamento que poderíamos trocar ou comprar. O dinheiro a ser recebido por sua venda não daria para mobiliar o apartamento, mesmo levando boa parte do mobiliário antigo. A questão da preservação de casas antigas é muito mais complicada do que se pensa e o incentivo para isso é quase inexistente por parte do poder público. Sempre argumento este aspecto nas nossas lutas pela preservação de bens particulares na cidade. Por outro lado, meus filhos estavam atrás de um imóvel para montar uma empresa em sua área de trabalho, rede de computação, e os alugueis se revelavam bastante elevados. Neste espaço de tempo leio o texto de Bruno, com comentários de Ediney Martins, mexendo fundo em sentimentos e saudades e ampliando o orgulho em relação à casa e o significado dela não só para a família Abelem, mais para os amigos, principalmente crianças, que nela conviveram e acompanharam sua história.
Bruno Soeiro e Cassius Abelem - 1a. comunhão NPI/UFPA
Bruno e Ediney foram colegas do meu filho mais novo, Cassius, desde o primário até o colegial no Núcleo Pedagógico Integrado – NPI da Universidade Federal do Pará – UFPA. Conviveram conosco no casarão em momentos de estudo e lazer, de alegrias, broncas e tristezas Tomo a liberdade de tecer alguns trechos do blog de Bruno com comentários meus e de Ediney.

Jorge e Cassius com Nagib e Jorge com premios de torneio

Bruno – Você leitor pode pensar que estou feliz pois o carnaval está chegando, estou ouvindo marchinhas ..., não é? Bem, não posso dizer que estou feliz, nem tampouco triste, estou melancólico e ao mesmo tempo frustrado. ... Ontem, ao falar com um grande amigo, fui informado por ele, que a família dele está vendendo a casa em que ele fora criado e que por muitas vezes estive presente, brincando e estudando durante minha infância. Para aqueles que conhecem superficialmente aquela casa, poderá parecer que se trata de uma casa antiga e ponto, sem muito valor que, devido a sua localização, seria mais viável economicamente transformá-la em um negócio qualquer. Todavia, aqueles que a conhecem profundamente, sabem do que estou falando. É uma casa com personalidade forte e que impõe respeito. Trata-se de uma casa em estilo antigo que deve ter aproximadamente cem anos, pois fica no bairro do Reduto, local que décadas atrás era um local muito movimentado social e economicamente, mas que devido à dinâmica especulativa da cidade, ficou quase que no ostracismo urbano. Importante reconhecer que na última década bairro ganhou força, foi “turbinado” por uma onda de empreendimentos lá instalados. A casa tem “pé direito” alto, piso de madeira, corredor largo, em torno de cinco quartos, quintal, terrace (para aqueles que gostam de um bom “papo molhado” com os amigos é perfeito aquele espaço). Por falar no terrace, é inevitável lembrar do “velho” Abelem, pai do meu amigo. Sendo sincero, apesar de conhecê-lo superficialmente, a imagem que tenho dele é aquela do pai perfeito, se é que existe. No último encontro com o “velho Abelem”, estávamos eu, Rogério, Ediney e o Cassius no terrace quando ele aproximou-se e participou do nosso breve e inesquecível encontro. Já com limitações em decorrência de uma doença que persistia em tirar sua vitalidade, mesmo assim, o seu Abelem (como eu o chamava) conseguiu brincar conosco, fazendo com que aquele encontro de velhos e queridos amigos se tornasse indelével em minha mente. Na ligação telefônica de ontem com o Cassius, cobrei dele que promovêssemos um novo encontro no terrace com o objetivo de reinaugurá-lo, desta feita, já com a poesia de João de Jesus Paes Loureiro que um dia fora pintada em uma das paredes do terrace, mas que o tempo cuidou de apagar. ... . Falei acima em melancolia e frustração, bem o primeiro sentimento se dá em virtude da venda da casa, o segundo, pelo fato da venda não ser para mim, é reconheço, sempre tive um sonho secreto de um dia morar naquela casa. Nunca havia externalizado para o Cassius, talvez por vergonha como ele pudesse interpretar minha intenção. Algumas semanas atrás havia confidenciado à minha esposa que tão logo tivesse oportunidade, engoliria a vergonha e diria a ele que, se um dia a família dele pusesse a casa à venda, gostaria que me fosse dada a preferência. Em resumo, não falei, a casa foi posta à venda e o negócio quase concluído. Papai do céu não quis.”

Cassius, Fabrício Haber e Bruno Soeiro curtindo brincadeiras no casarão
Bruno se referia à poesia que JJ Paes Loureiro, amigo do Abelem e integrante da turma de advogados de 1964, escrevera com pincel na parede do terrace do casarão quando de sua inauguração para reunir amigos e celebrar as noites de lua cheia.

Antonio Jorge Abelem com seus filhos Antonio Jorge e Cassius no terrace, tendo ao fundo a poesia de JJPaes Loureiro
“ Passa barca
Passa vento
Passa amante
Passa amada
Passa a vida
Fica o amor
Passa o amor
Não fica nada
Então brindemos o amor, maior que a vida,
Bebendo nesta taça do luar
Que a cerveja é melhor do que a tristeza
e faz da bem amada nosso mar”

Ediney – Irmão, o texto é lindo e bateu fundo no peito. Loas ao Abelem e a todas as nossas boas lembranças daquela casa, que persistirão independentes da existência física dela, inclusive, porque é na nossa memória que vivo estamos crianças e vivo está o velho Abelem que, ao se emocionar quando nos viu naquele encontro, se fez ainda mais presente - para sempre - em nossas vidas. Devo dizer que é prova de bom gosto pensar em um dia morar ali se um dia quisessem vender, e já adianto que isso também passava pela minha cabeça quando morava em Belém, mas ando pelas bandas de cá. Acho que estou em Belém no final de fevereiro, então fala para o Cassius colocar no contrato de venda que queremos o terraço por mais um final de semana, para celebrarmos a vida e os momentos eternos, porque, como diz o poema do Paes Loureiro no final, "passa o amor...não fica nada”. Celebremos juntos, mais uma vez, a vida e o amor que sempre nos uniu. Obrigado pelo presente do texto.
Auriléa – Bruno, Fiquei muito emocionada ao ler seu texto sobre nossa casa e nosso querido Abelem que nos deixou essa imagem de um homem íntegro, alegre e principalmente amigo e companheiro, passando para a casa, nosso lar, a personalidade forte a que você se refere. Emocionada pela amizade de vocês, pelas lembranças agradáveis da infância e por termos contribuído para essas coloridas recordações. Fiquei também impressionada de vocês terem guardado na memória a poesia que o João de Jesus Paes Loureiro escreveu na parede do terrace.
Ediney - "Dona Auriléa, vi só agora a sua mensagem, depois de um carnaval que tive o prazer de passar com meus dois filhos mais novos (o mais velho mora em Castanhal, com a mãe). Como estou morando perto da praia, íamos todos os dias brincar no mar, mergulhar juntos, fazer buracos na areia, tomar picolé, fazer fotos com sorrisos que o futuro sempre agradecerá, e isso eu devo a vocês dois, ao seu Abelem e à senhora. A senhora sabe ... foi nos momentos que passei na casa de vocês - exatamente essa que motivou o texto do Bruno e que também me pegou de assalto - que aprendi ... e a referência do que é uma família. É certo que todos temos problemas, mas a vida é assim mesmo, não é? Naquela casa tem momentos nossos, esses que formam as pessoas, que são a argamassa da espinha dorsal de nosso caráter, e é por isso que o Bruno e eu ficamos tão emocionados com tudo isso. Devo ir a Belém no final deste mês e estamos combinando um encontro no terraço, para um bate papo, para uma homenagem ao Abelem, a vocês e certamente a todos nós, porque é isso que fica. Muito bom ter lido o seu texto e lhe encontrado por aqui."
Não preciso acrescentar mais nada! Minha emoção está justificada! E a permanência da casa com a família Abelem, também, ainda que não mais para uso residencial! Mas continua linda! Depois eu conto!

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Os Casarões da Minha Vida - O casarão da São Jerônimo, o Bairro do Reduto e a figura de meu pai


Em 1991, na data de hoje, 19 de janeiro, meu pai, Pedro José de Mendonça Gomes, partia para o mundo espiritual. Vítima de um aneurisma intestinal, só diagnosticado após seu falecimento, passou apenas dois dias internado na UTI do hospital cardiológico - SOCOR, então na João Balby, quase esquina da Alcindo Cacela. Sua morte, rápida, me abalou profundamente. Nesta época estava respondendo pela direção do Centro de Filosofia da Universidade Federal do Pará – CFH/UFPA, que dividia com Heraldo Maués, de licença por motivo de cirurgia. Janeiro, período do vestibular, época de trabalho intenso. No dia 18 não consegui chegar no horário de visita. Papai morreu na madrugada do dia 19. Não me perdoava por não tê-lo visto na véspera. Nem à universidade, que “roubara” meu tempo que poderia ter sido dedicado a ele. Demorei a retomar o prazer pelo trabalho universitário. Durante meses me deparei chorando enquanto dirigia, a caminho da UFPA. O tempo passou. Hoje completam 25 anos que ele se foi. A saudade continua imensa e o amor também, mas passei a encarar a morte com mais naturalidade e a ter certeza de que ele continua vivo em outro plano espiritual. 
Lembro meu pai levando-me ao cinema, ao dentista, acompanhando e estando sempre presente nos momentos importantes de minha vida. Exageradamente cuidadoso, era sempre vigilante. Acompanhava-me às festas universitárias e sempre interrompia alguma dança em que o cavalheiro era mais ousado. Mas gostava e era amigo do Antônio Jorge, seu vizinho de loja, no Reduto. Em várias ocasiões apoiou nosso namoro quando minha mãe a ele se opunha pelo espírito boêmio do Abelem. Mas o que mais me recordo de meu pai, até hoje, após tanto tempo de sua partida, é o exemplo de humildade com que encarou os reveses que a vida lhe ofereceu. 

Pedro Gomes, sua esposa Cecília, seus sete filhos e seus pais Aurea e Rafael Ferreira Gomes, década de 60

FRIGOPAR na esquina da Rua 28 de setembro com a Trav. Benjamin Constant, década de 60.

Esquina da Rua 28 de setembro com Benjamin Constant, Cartório de Registro de Imóveis onde antes situava-se o FRIGOPAR

Tendo sido um “rei” no Reduto, seja como filho da família Rafael Ferreira Gomes, seja como um dos sócios do Frigorífico Paraense – FRIGOPAR, passou na década de 80, após falência da firma, do enfarto que o impediu de continuar à frente da Lanchonete VINDI-K e a venda do casarão por hipoteca ao Banco da Amazônia S/A – BASA, a tomar conta de uma banca de revista que o genro, Antonio Jorge Abelém, abriu para ele anexa a sua Loja Jorbem, na 28 de setembro, esquina com a Benjamin Constant, onde na outra esquina tinha funcionado o FRIGOPAR. O movimento era pequeno, saiu de lá para tomar conta de uma portinha/lanchonete, que Abelem abriu no depósito da Loja Jorbem da Boulevard, na Oriental do Mercado, onde vendiam sopa aos feirantes, depois ficando como uma espécie de supervisor desta loja de redes e da frabriqueta de mosqueteiro que ali funcionava. Nunca ouvi de sua parte qualquer reclamação ou revolta, ao contrário, na sua simplicidade gostava de conversar com os fregueses, feirantes e ambulantes que por lá transitavam. Era amigo e “conselheiro espiritual” de muitos deles.

Pedro Gomes na porta da lanchonete VINDI-K, nos jardins do Casarão da São Jerônimo

Para registrar a importância que sua firma teve para a cidade de Belém na década de 60, e melhor entender quando ressalto sua humildade, transcrevo o texto da coluna “Quem é Quem”, de um jornal local de 1966, cujo recorte encontrei entre os documentos deixados por minha mãe.


“QUEM É QUEM presta hoje uma justíssima e sincera homenagem a um dos construtores do progresso do Pará. Pedro José Gomes, do FRIGOPAR, mola mestra no pioneirismo da Industrialização da carne verde foi o escolhido para figurar nesta coluna. E o leitor, conhecendo o que já fez o FRIGOPAR, certamente está apoiando a nossa iniciativa.
Pedro José de Mendonça Gomes é nome de alto significado no comércio e indústria do Pará. Cem por cento paraense, filho do digno casal Rafael Fernandes de Oliveira Gomes e esposa Aurea de Mendonça Gomes, traz nos ombros a pesada responsabilidade do fornecimento de carne verde para cinquenta por cento da população de Belém, Forças Armadas e estabelecimentos do Govêrno do Estado. Trabalho desenvolvido através do FRIGOPAR de onde é proprietário, juntamente com seu irmão José Gomes, o sr. Pedro José de Mendonça Gomes é um dos valores do nosso comércio e indústria, projetando a vida econômica da nossa região.
Com um, sem dúvida alguma, elogiável tirocínio comercial, iniciou sua atividade nos nossos meios comerciais em 1937, nos Armazéns Ferreira Gomes. Atuou na Paraense Transportes Aéreos e finalmente no FRIGOPAR dando a este frigorífico elogiável impulso, atendendo plenamente as necessidades de consumo do povo.
É casado com dona Cecília Ramos Gomes, tem sete filhos, sendo o maior com 23 anos e o menor de 8. Além do FRIGOPAR é proprietário de dois matadouros, Matadouro Agro Pecuário Industrial, em Goiânia e Pedro Afonso. 
Dando mais uma parcela de valiosa contribuição para o desenvolvimento econômico da Amazônia, vai o sr. Pedro Gomes, dentro de dois meses inaugurar a S.A. em Benevides, para explorar a indústria leiteira. Trata-se da Rafaellandia Agro Pecuária Industrial S.A., numa simpática e valorosa homenagem ao seu genitor Rafael Gomes. Objetivando melhor atender ao fornecimento de carne verde, vem de aumentar a frota de transportes do FRIGOPAR adquirindo um aparelho “Consolited”, AZX.
Para o abastecimento de Belém, está adquirindo gado em Santarém, atendendo um apelo do Governador Alacid Nunes e do Prefeito santareno, Elias Pinto. Com essa aquisição, presta inestimável colaboração aos criadores e fazendeiros da região do Baixo Amazonas que atualmente não tinham a quem recorrer para a venda do gado que enfrenta, com o crescimento das marés equinociais, o perigo de desaparecer tragado pelas enchentes. Com esse comportamento, o nosso homenageado Pedro Gomes, presta uma grande solidariedade aos criadores e fazendeiros.”
Foto copiada do perfil Belém Antiga, facebook
Em 1970 foi decretada a falência da firma.

Os Casarões da Minha Vida - Antônio Jorge Abelem, um direitista?



Eu e Antônio Jorge tínhamos uma relação de cumplicidade intensa, não sem conflitos, no amor, na família, no lazer e no trabalho. Lembro quando, na década 70 viajei para Soure com uma equipe do IDESP para pesquisa de campo e no final de semana chega ele e Wilson Souza, na primeira foto, compartilhando de momentos de lazer na praia de Pesqueiro. A ajuda sempre foi mútua!
Minha participação em relação a sua trajetória profissional, no meu olhar, se fez sentir principalmente quando por duas vezes o pressionei para mudar de foco. A primeira foi não mais tratar de recuperação de terrenos ocupados, reintegração de posse dos terrenos da Sacramenta, quando eu pesquisava e defendia a Luta pela Moradia Urbana, isto no início da década de 80. Na época desenvolvia a pesquisa para minha dissertação de mestrado sobre o remanejamento da população do Igarapé São Joaquim para o Conjunto Providência e em um seminário sobre a questão de moradia popular, no NAEA, Januário Guedes apresentou um filme curta metragem sobre o problema na Sacramenta, citando o escritório Abelem como responsável pelos processos de reintegração. Lógico que houve certo mal estar da minha parte! Convenci Antônio Jorge a desistir de levar adiante os processos e considerar a contradição destas ações com o meu trabalho e o meu posicionamento sobre a questão. A segunda influência foi em defesa de sua saúde.



 A Adega do Rei, já no prédio da antiga União Espanhola, passa a apresentar problemas de roubo e de ameaças de violência, com a chamada turma da Bailique, jovens que frequentavam bares e criavam desordem. Apesar dos momentos agradáveis, a segunda Adega tinha perdido no decorrer do tempo, o encantamento da primeira, quando nos jardins do casarão de meus pais. Insisti que fechasse, para ter sossego e relaxar pelos menos nos fins de semana. Por outro lado, os trabalhos de maior responsabilidade no escritório de advocacia era eu que digitava, já que ele não lidava com computador, e fazia a devida revisão. Assim, conheci os meandros da advocacia e o vai e vem dos processos, em que para cada argumentação que você, leigo/leitor, considera vencida, vem outra e outra subsequente derrubando a anterior. Aprendi o que significa na advocacia a assertiva de “advogado do diabo”. Se você defende seu cliente, você busca argumentos que provem que ele está certo, que ele está com a razão, mesmo que não esteja. Abelem era bom nisso, era bom de briga! Funcionou como advogado do Grupo Líder/Nazaré, do grupo de Lojas Massoud e tantos outros, comerciantes. Mas também ajudou muita gente que não podia pagar e que atendia de graça. Transitando facilmente entre esquerda e direita, Abelem tinha valores e princípios que para mim o colocavam em uma dimensão social e humanitária em muitas de suas atitudes. No tempo em que se percebia dicotomicamente as posições assumidas pelas pessoas, direita/esquerda, olhar revivido hoje, se você não está comigo está contra mim, Abelém era considerado de direita, por ser comerciante e ter um pequeno capital e depois ser advogado de muitos empresários, mas ele de coração, de atitudes, talvez fosse mais de esquerda, no sentido de mais humano, mais inclusivo, do que muitos que mantinham essa posição no discurso, mas não na prática. Daí eu sentir um certo desconforto quando alguns dos amigos o rotulam em seus textos sobre o golpe militar de “o direitista Antônio Abelem”. Exemplo emblemático é o da ajuda permanente que deu à filha de uma empregada de sua família, que foi criada por eles e que quando ele adoeceu deu entrada em um pedido de reconhecimento de paternidade, com a justificativa perante o juiz que só sendo seu pai para tê-la ajudado tanto, ser tão bom com ela. O exame de DNA negou tal possibilidade.
Mesmo para seus clientes em questões comerciais ou trabalhistas, eu comentava com ele que não sabia cobrar. Acostumado a labutar no comércio, a dar preço a mercadorias, calculando seus impostos e lucros, ele não sabia cobrar seu bom trabalho intelectual. Sem ser rico, mas sendo muito empreendedor, Abelem ajudava seus amigos como os colegas da universidade perseguidos, minha família que foi à falência e outros amigos e empregados. As fotos mostram suas lojas de porte médio, a matriz na esquina da Rua 28 de setembro com a Benjamin Constant e a filial na Boulevard Castilho França, esquina da Oriental do Mercado, que registra nossa última trasladação vista da loja, como fazíamos todo ano, confraternizando com amigos e empregados.





A partir de 1991, Abelém começa a apresentar problemas de saúde. Logo após a morte de meu pai, evidencia-se a necessidade de uma cirurgia cardíaca para colocação de uma válvula aórtica. Pressionada por este fato e mais as ameaças do governo Fernando Henrique sobre as conquistas trabalhistas nas IFES – Instituições Federais de Ensino Superior, em 1996 solicitei aposentadoria da UFPA, na mesma época em que ele fez a cirurgia de coração com pleno êxito. 
Final de 2000 surge o terrível diagnóstico de um tumor benigno no cérebro, cuja cirurgia, em março de 2001 foi feita em São Paulo, no Hospital Albert Einstein, com intercorrência de infecção hospitalar e necessidade de uma correção no circuito elétrico cardíaco. Foram terríveis 30 dias entre o Einstein e o INCOR. Abelem nunca mais foi o mesmo. 
Os amigos apareciam no início, mas aos poucos suas visitas foram rareando. Diziam ficar constrangidos de encará-lo em tal situação, desconhecendo o bem que uma visita amiga proporcionava. Não era o caso do compadre e amigo Dr. Failache sempre presente, nestes oito anos. Considerava-o meu porto seguro, orientando o que fazer nos momentos difíceis que atravessamos. Ainda assim, mensalmente, antes da piora final, eu organizava um café com amigos para reuni-los em nossa casa.
Supervisionei a loja da Boulevard por um ano tentando salvá-la das dívidas enormes que tinham se acumulado. Não conseguindo ela foi fechada e o ponto e seu saldo vendido. Indenizei todos os empregados, inclusive gerente com 20 anos de casa. Nenhum recorreu à justiça. Consegui fazê-lo vendendo peças antigas da casa e as minhas joias mais valiosas, presentes de meu pai e de meu marido. Sem pena, agradecendo ter do que lançar mão para enfrentar os desafios dos impostos do comércio e de encarar os custos de sua doença.
Em 2005 organizei a festa de seus 70 anos, no sentido de louvar a vida e tê-lo ainda entre nós. Ele estava feliz, reunindo familiares, vizinhos e amigos. Da turma de 64 compareceram, Ronaldo Barata, Leonildes Silva e JJ Paes Loureiro, conforme se vê em foto.




Quando ele adoeceu me descobri uma mulher forte e capaz de dar a ele o apoio necessário emocional e financeiro, como ele havia dado a tantos, inclusive a meu pai.
Abelém morreu em 2009, vítima de um enfarto que veio em seu socorro para evitar maiores sofrimentos que as doenças degenerativas provocam. Era uma segunda-feira gorda! A cara dele, morrer no carnaval! Deixou-me muitas lembranças, muitos ensinamentos e a certeza de ter convivido com um parceiro que tinha um coração apaixonado, solidário e cristão. Isto é ser de direita?

Os Casarões da Minha Vida - Antônio Jorge Abelem, meu amado companheiro do casarão do Reduto





ANTONIO JORGE nasceu em Belém, no bairro do Reduto, em 23 de junho de 1935, filho de Jorge Abelem Aze e Emília Zalouth Abelem, ambos de origem libanesa. Estudou no Colégio São Geraldo Magela, Colégio Nazaré e na Escola Prática. Único homem dos cinco filhos nascidos ficou órfão de pai aos 19 anos, passando a dividir com a irmã Maria Léa, três anos mais velha, a direção e sustento da família. Para tanto largou a Faculdade de Direito onde cursava o primeiro ano, retornando anos mais tarde com a ajuda e incentivo do amigo Roberto Simões. Neste espaço de tempo dedicou-se ao comércio, ampliando os negócios deixados pelo pai, uma loja de tecidos e armarinho na Rua 28 de setembro, passando a ter em 1964, quando nos conhecemos, mais três filiais, em Boulevard Castilho França (foto), Canudos e Estrada Nova, além da matriz e de uma fabriqueta de guarda-chuva, com o slogan “Loja Jorbem, que cobre e veste bem os quatro cantos de Belém”.
Abelém retorna a Faculdade de Direito em 1961, no segundo ano, passando a manter estreita amizade com alguns de seus colegas de turma, como Leônildes Silva, João de Jesus Paes Loureiro, Ronaldo Barata, e Gabriel Leal.
Conheci Antônio Jorge em 1964, meses antes dele se formar.



O Frigopar, de meu pai e onde passei a trabalhar no escritório, quando no segundo ano da Faculdade, ficava na outra esquina de sua loja na 28 de setembro e de lá ele me paquerava. Além disso, eu morava na São Jerônimo, quase vizinha da União Acadêmica Paraense e da minha janela, sempre via os estudantes que mais frequentavam a UAP, inclusive o Antônio Jorge. Fui apresentada a ele, na banca de tacacá da Judite, A Jurídica, por minha colega de turma Heliana Lima, depois Jatene. Sendo colega e amiga de Isidoro Alves, através dele Abelem começou a me telefonar e iniciamos um namoro interrompido em maio de 1966 e reatado em abril do ano seguinte. Casamos em 1968. 


O namoro teve início poucos meses, antes de sua formatura, primeiro dia em que frequentei sua casa, não tendo, pois, intimidade com a família e ficando com meus pais na área da garagem, só tendo acesso ao interior da casa, na hora da ceia. Portanto, não vi a cena em que João de Jesus Paes Loureiro, na qualidade de orador da turma, tentou fazer o discurso impedido na cerimônia da colação, quando Dr. Clóvis Malcher também se negou a fazer o de paraninfo, em solidariedade. Mas não seria ainda desta vez que se ouviria o discurso do orador da turma de direito de 1964.  Um coronel, vizinho da família, ameaçou prender Paes Loureiro se ele atendesse ao pedido dos colegas que o incentivavam a falar. Soube depois, por Antônio Jorge, o que ocorrera nos salões internos. Era muita gente, muitas paqueras, não convinha pra ele que eu circulasse por ali. Entendi isto mais tarde. Após casarmos e enquanto Abelem gozou saúde, a maioria das festas comemorando a data da colação desta turma, festejada todo ano, foi realizada em nossa casa, na 28 de setembro, onde passei a morar, dez meses depois de casada, em virtude de doença grave de sua mãe, minha sogra. A foto registra uma das celebrações da turma no casarão da 28.

Bem sucedido no comércio, Antônio não pensou de início se dedicar à advocacia. Mas a dificuldade encontrada pelos colegas que haviam sido presos ou perseguidos o fez montar um escritório com Ronaldo Barata, Leônildes Silva, José Seráfico, João de Jesus Paes Loureiro, Gabriel Leal e José Gorayeb. A primeira causa defendida pelo escritório foi uma questão do Frigopar, frigorífico do meu pai, que os fez viajar para Goiás (Cristalândia) a fim de participar de uma audiência (foto abaixo no aeroporto indo deixá-los para viagem). Desses colegas quem ainda trabalhou um bom tempo com o Abelem, já no escritório do Ferro Costa, no Edifício Importadora, que ele dividia com Wilson Souza, foi Ronaldo Barata e, principalmente, Leônildes Silva. Os demais foram logo saindo para outras áreas como magistério e literatura.

Antônio era uma pessoa admirável, com ele aprendi o sentido da amizade plena, sincera, a solidariedade. Ajudou meu pai, quando foi à falência, um ano depois de casarmos, a montar uma lanchonete no jardim/garagem do casarão da São Jerônimo – Vindi-K. Anos depois nesse mesmo local surgia a Adega do Rei, em sociedade com Claudio Guimarães, seu amigo-irmão, arquiteto, que havia sido despedido como copiloto da Varig, por ter reclamado do extravio da mala do Abelem.
 Final da década de 70, primeiros anos da de 80, a Adega do Rei, principalmente em sua primeira etapa, reunia estudantes e profissionais de esquerda que curtiam uma boa música, boa bebida, um bom papo, capitaneado pelo poeta Ruy Barata, e que cantavam e torciam pela redemocratização do país. Com a necessidade da venda da casa de meus pais que estava hipotecada, a Adega do Rei passa a funcionar na União Espanhola e o Comandante Claudio sai da sociedade para ir voar no garimpo. Abelém fica sozinho, dividindo seus afazeres do escritório de advocacia, das lojas de comércio, da direção do Monte Líbano e do Paysandu.


terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Os Casarões da Minha Vida - Do Bairro de Elite ao Bairro Operário


Os Casarões da Minha Vida

Do Bairro de Elite ao Bairro Operário 





“O Reduto que já foi habitado, predominantemente, por pessoas de baixo poder aquisitivo, exerceu importante papel no desenvolvimento comercial de Belém. A proximidade do bairro com a Baía do Guajará era um aspecto favorável. Comerciantes de várias nacionalidades, principalmente sírio-libanesa, se estabeleceram na região pela facilidade de descarregar suas mercadorias. No início do século XX, a maior parte das fábricas que se instalaram em Belém estava situada no Reduto. Foram estabelecimentos que, no período de 1920 a 1940, se mantiveram firmes em sua produção. Por essas características, o lugar recebeu identificações como “bairro mercado” e “bairro operário”.” (Jornal o Diário do Pará de 12/01/2010).

Em 1969 fui morar na casa da família Abelem, na Rua 28 de setembro 982, no Bairro do Reduto, já casada com Antônio Jorge Abelem, único filho homem de um casal de migrantes libaneses que se conheceram em Belém, ambos residentes no Bairro do Reduto, na Rua 28 de setembro.
No entanto, minha ligação com o Bairro extrapola os 41 anos em que aí morei. Meu bisavô, Raphael Fernandes Gomes foi um dos sócios fundadores da firma Ferreira Gomes & Cia., que sucedeu à firma Centro Comercial Redutoense, em companhia de mais outros dois sócios, todos de nacionalidade portuguesa. Situada na Rua 28 de setembro, entre a Doca do Reduto e a Rua Benjamin Constant, tem seu primeiro registro na JUCEPA com a data de 1881. Em 1912 meu avô, Raphael Fernandes de Oliveira Gomes, entra como um dos sócios solidários e de responsabilidade ilimitada. Em 1924 a firma é recomposta, transformada em sociedade anônima sob a denominação de Ferreira Gomes Ferragista S/A, explorando os ramos de ferragens, ferro, louça, estância de madeira e outros já anteriormente existentes, de acordo com a foto de propaganda. Ocupava vários prédios na Rua 28 de setembro, não só o prédio da matriz mostrado na foto. Além das lojas de comércio, desenvolviam indústria de fabricação de pregos e outras correlatas, sob a denominação de União Fabril Comercial, situada na Trav. Piedade, sob os números de 1 a 9, e  indústrias de madeiras e outras, como a Serraria Benfica, à estrada de Ferro Bragança, ramal de Benfica conforme registro na Junta Comercial do Pará – JUCEPA. Lembro-me de uma filial na João Alfredo, entre Padre Eutíquio e Campos Sales, chamada RIOMAR, que meu pai, Pedro José de Mendonça Gomes, gerenciava, quando eu ainda era criança.

A Firma Ferreira Gomes Ferragista S/A era uma potência e, de certa forma, dominava o comércio do seu ramo no Bairro e, por que não dizer, na cidade. O prédio da matriz ocupava todo um quarteirão da  Rua 28 de setembro, entre a Travessa Benjamin Constant e a Doca do Reduto onde hoje existe um posto de gasolina, mostrado em foto. No início da década de 60 começaram as dificuldades, sendo a falência decretada em 1965, último ano com registro na (JUCEPA), Funcionou, portanto, 84 anos.

Na esquina da Rua 28 de setembro com a Trav. Benjamim Constant existiam três estabelecimentos que se cruzam na minha história: Ferreira Gomes Ferragista S/A, Frigorífico Paraense Ltda. – FRIGOPAR e Lojas Jorbem, antes Bazar São João. Mas isto depois eu conto.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Cidade, Identidade e Temporalidade


CIDADE, IDENTIDADE E TEMPORALIDADE

                                                                                Auriléa Abelem



Avenida São Jerônimo, entre as Travessas Rui Barbosa e Benjamin Constant. Com destaque para o poste de ferro e as jovens mangueiras. Desconheço auto, foto retirada internet
Bairro da Terra Firme, um dos mais populosos da cidade. Foto retirada Google, Foto Terra Firme/ agencia divulga.



A cidade não é homogênea, ela reflete a estrutura da sociedade, apresentando espaços fragmentados e segregados. Por outro lado, esses espaços se articulam formando um todo que condiciona a vida em sociedade e ao mesmo tempo lhe é reflexo, impondo e criando uma série de simbolismo que vão desenhar imagens objetivas e subjetivas sobre a cidade, base para a construção da identidade. Como afirma Bader Sawia, identidade não é uma substância dada que se mantem ao longo de sua existência, imutável e idêntica a si mesma. Ela está sendo sempre reposta, ainda que a aparência seja de estabilidade. Ao falar de identidade entra-se no campo dos processos de diferenciações, de choques de interesses e de hierarquizações das distinções. Ao perguntar pela identidade da cidade, deve-se ter em mente que ela não é apenas uma estrutura física, um conjunto de ruas, prédios e praças. Ela contem uma subjetividade enquanto possuidora de uma história, reflexo de desejos, carências, conflitos e ambiguidades. Há uma interação, um encontro de identidades de homens/mulheres e de espaços. Espaços esses construídos por relações sociais, constituídos de simbolismos que apresentam significados diversos para as diferentes classes sociais, para as diversas gerações. Não existe uma única leitura da cidade, até por que um mesmo espaço urbano possui temporalidades diversas, territorialidades distintas.

Pensemos nossa Praça da República, ilustrada nas duas últimas fotos. Podemos perceber diferentes territorialidades, diferentes poderes exercidos no espaço da praça em diferentes horários do dia e/ou em diferentes dias da semana: adultos e idosos fazem Cooper pela manhã nos dias úteis, mas nos sábados e domingos a praça é dos ambulantes e/ou feirantes com suas vendas de artesanato e mercadorias importadas, enquanto as noites presenciam outros personagens a desfilar na praça que passa a ser dos boêmios e outros personagens. O ritmo do tempo também se apresenta diverso, o borborinho da feira, a ligeireza do andar no Cooper, contrastam com o tempo lento da noite calma na espera do freguês ou do efeito idílico do álcool.

A cidade é vista e vivida de diferentes maneiras, seja pensando o passado, o presente ou o futuro. A representação que se faz da cidade está intimamente ligada à relação que os indivíduos tem com o espaço urbano, relação de moradia, de trabalho, de lazer, de devoção. Tem a ver com o papel que a rua desempenha nos seus folguedos de criança, com o namoro adolescente na praça, com a agitação do trânsito para a escola ou para o trabalho, com o saudosismo das cadeiras nas calçadas, com a chuva da tarde diminuindo o calor do dia, e mais recentemente com a agitação e paquera no shopping center e nos bares da Doca.
Mas a cidade é desigual, conforme observamos nas duas primeiras fotos. Ela possui um espaço em que a cidadania é plenamente exercida, em alguns já há bastante tempo, e outro em que ela inexiste. Inclusão e exclusão formam os extremos de pertencimento à cidade. Ainda assim, o processo de exclusão e segregação social que é refletido na existência dual da cidade não impede que se dê o processo de inclusão e que mesmo os despossuídos idealizem seus desejos sobre o prazer de morar na cidade bela, bem servida de infraestrutura, ainda que pouco usufruam de seus serviços. Essa inclusão através da participação imaginária permite aos excluídos se organizarem e lutarem por seus direitos, apresentando reivindicações a serem apreciadas e trabalhadas na pauta de decisões políticas para a cidade. Luta também desigual, já que o acesso à pauta passa por um sistema de filtro, próprio do processo de decisão política que continua sendo hierárquico.
No imaginário, portanto, a representação da cidade se faz de acordo com os interesses, vivências e desejos das diferentes classes, dos diferentes gêneros, das diversas gerações.


Os Casarões da Minha Vida - Meu avô materno e o Casarão da Av. São Jerônimo


Os Casarões da Minha Vida
1.     Meu avô materno e o Casarão da Av. São Jerônimo

Em meados de 1954 mudamos do número 334 para o 267, na Avenida São Jerônimo, casa anteriormente de propriedade do meu avô materno, que havia se separado de minha avô, com quem aparece na primeira foto com os filhos, no dia do noivado de meus pais,  tendo depois constituído nova família. Filho de migrantes portuguêses,  Antônio Alves Ramos e Anna Alves Ramos, que iniciaram suas atividades no ramo de panificação, meu avô foi o primeiro presidente da companhia de aviação Paraense Transportes Aéreos S/A – PTA.
Na década de 50 o Jornal “O Aeronauta” do Rio de Janeiro, de 15 de janeiro de 1958 publica sua foto com os seguintes dizeres: “O cliché ilustra o sr. Antônio Affonso Ramos Junior, que como já é de conhecimento público, vem impulsionando com grande brilhantismo a empresa PARAENSE TRANSPORTES AÉREOS S/A, que em tão pouco tempo, já conta com a simpatia das autoridades civis e militares, pela soma de bons serviços prestados ao povo brasileiro.” Em final da década de 50 e início de 60, resolveu ele ir morar com a nova família na cidade do Rio de Janeiro, passando seus negócios para o filho e dois dos seus genros. Tio Tony, Antônio Alves Ramos Neto, ficou com a PTA,
cujo negócio era inicialmente, transporte cargueiro, principalmente carne, ampliado depois para o transporte de passageiro, e os genros, meu pai Pedro Gomes e seu irmão, José Fernandes Gomes, ficaram com charqueada e um frigorífico, FRIGOPAR, situado na esquina da Rua 28 de setembro com a Trav. Benjamin Constant. Folcloricamente, a sigla PTA era ironizada com o significado, para alguns, de “Prepara tua Alma” devido a vários acidentes que ocorreram com a empresa, para outros, “Preto também Avua” já que a companhia tinha comandantes negros, inclusive na diretoria, diga-se de passagem, bonitos e elegantes.
Meu avô Ramos dizia que “Muito Ramos juntos só pode dar galho” e assim foi por vários anos, mesmo depois de ambos os negócios terem fechado, entre final da década de 60 e início da de 70. Nunca soube como foi a transação de meu avô com meu pai em relação ao casarão. Só sei dizer que fomos muito felizes naquela casa, eu particularmente de 1954 a 1968, tendo meu pai permanecido, mesmo depois da falência do Frigopar. Com a ajuda do genro, Antônio Jorge Abelem, meu marido, montou no jardim do casarão uma  lanchonete, que passou a chamar-se, por sugestão de sua mãe, vó Aurea, Vindi-K. Vizinha do Centro Cultural Brasil Estados Unidos, CCBEU, que funcionava no prédio ao lado, onde hoje é o IPHAN, pode garantir a sobrevivência da família, enquanto teve saúde para tal. Depois, no mesmo local já ampliado para o quintal, meu marido abre a Cervejaria Adega do Rei. Mas isto já é outra história.


quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Os Casarões da Minha Vida - O quarteirão da São Jerônimo e meus inesquecíveis vizinhos


Os Casarões da Minha Vida
5. O quarteirão do Casarão da São Jerônimo e meus inesquecíveis vizinhos



Poucos imóveis situados na Av. São Jerônimo, entre Rui Barbosa e Benjamin Constant, na década de 1960, existem hoje. Deles destacam-se, no quarteirão da nossa residência: o belo casarão da esquina com a Trav. Rui Barbosa, onde hoje funciona o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN e anteriormente foi sede do Centro Cultural Brasil Estados Unidos – CCBEU, residência da família de Otávio Mendonça, e na minha primeira recordação sede de um partido político. Situava-se à esquerda de nossa casa; do lado oposto, à direita, a casa da família Abrãao e Alfonsita Antônio José, donos da Farmácia Sul Americana, com duas unidades, uma na Santo Antônio e outra no início da Treze de Maio, ambas no comércio, e que resistiram até à formação dos novos grupos que passaram a dominar o comércio farmacêutico em Belém; mais próximo da Benjamim, alguns imóveis resistem, entre eles, o da família Homci e de Abílio Velho, então um dos donos da Importadora de Ferragens, no bairro do Reduto. No quarteirão em frente destacam-se: na esquina com Benjamin, outro belo casarão, antes residência do Comando da Aeronáutica, e funcionando hoje e com prédio perfeitamente preservado, uma outra unidade do IPHAN; ao seu lado, o pensionato da primeira foto, existente até hoje, em que moravam moças vindas do interior para estudar em Belém, muitas das quais nossas amigas. Merece destaque o poste de ferro que animava o romper do ano novo com suas batidas com instrumentos também de ferro. Alguns dos prédios que desapareceram, como se para apagar capítulos da memória da cidade, estavam neste perímetro da São Jerônimo. O pensionato do Padre Raul, quase na esquina da Rui Barbosa, abrigou estudantes que viriam a ter destaque na história política e social de Belém. Entre eles: Januário Guedes, Pedro Rumiê, Felix Oliveira e Pedro Portugal. Ao lado, outro pensionato, cujo prédio foi mais tarde residência da família Gurjão e depois da família dos Farazinhos que aprontaram e contaram muitas estórias. Mas o prédio mais emblemático para história política da juventude universitária de nossa cidade foi o de número 509, da União Acadêmica Paraense – UAP, derrubado em 1969 para dar lugar, junto com outros imóveis, a um investimento hoteleiro, o Hotel Regente. Segundo Isidoro Alves, em seu texto para o livro “1964. Relatos subversivos: os estudantes e o golpe militar no Pará”, depois da UAP este prédio abrigou a residência de um Comando Militar. Ficava vizinho à casa da família Antônio José, ao lado da casa de meus pais que passou a ter o número 543, quando da mudança de nome da Avenida para Governador José Malcher. Não interessava manter viva a memória do movimento civil estudantil e tal como a sede da União Nacional dos Estudantes – UNE, foi destruída fisicamente.  A foto da Folha do Norte de 01/04/1964, retirada de um artigo, publicado on line, “Um olhar à cidade de Belém sob o Golpe de 1964: paisagens e memórias de estudantes e artistas”, de Raquel Cunha e Flávio Leonel, de 2008, trás a seguinte legenda: “Desde as primeiras horas de ontem, com a notícia de que o Seminário Estudantil se reuniria na sede da UAP, ali estiveram, até à noite, elementos da Polícia. Na foto vemos o delegado Eimar Pantoja, com seus auxiliares, em frente à sede do órgão dos universitários.”
Várias das cenas que se seguiram e que tão bem são descritas por vários dos atores desta noite nos Relatos, assisti da janela de nossa casa. Como por exemplo, a narrada por Pedro Galvão no capítulo “Vencidos Vencedores”: “Vestidos de cuecas, sapatos e humilhação, eles procuravam manter a dignidade ao caminhar pelo centro da avenida mal iluminada, sob o olhar perplexo dos moradores nas janelas e da pequena multidão de estudantes e curiosos nas calçadas, de um lado e outro da rua, a nossa São Jerônimo velha de guerra, entre Ruy Barbosa e Benjamin Constant, justamente na quadra onde ficava a sede da UAP ...” e a nossa casa.
Neta e filha de comerciante de classe média, não tinha, na época, consciência política da importância e significado daquele momento. Só anos mais tarde, com estudo e convivência com pessoas politicamente engajadas, fui ampliando e clareando meu olhar e entendimento.


Os casarões de Minha Vida - O colégio das Irmãs Angélicas - 1954/1963

Os Casarões de Minha Vida
1.     O Colégio das Irmãs Angélicas – 1954/1963



Com uma educação austera, principalmente nos primeiros doze anos de minha vida, apresento a singularidade de ter estudado em casa até o terceiro ano primário, quando, com nove anos, passei a frequentar o colégio das Irmãs Angélicas, que funcionava no belo casarão da foto, situado na Serzedelo Correa,  entre Brás de Aguiar e Gentil Bittencourt, local onde hoje existe o prédio do SESI. As Irmãs possuíam dois colégios em Belém, o da Serzedelo, pago e frequentado por crianças e jovens de classe média e outra unidade na Antônio Baena com a 25 de setembro para crianças carentes. Em 1955 quando entrei no colégio, funcionava apenas até quarta série, acrescentando outras séries conforme esta turma avançava. Não tendo onze anos, idade exigida na época para frequentar o ginásio, não foi possível acompanhar a turma na qual entrei. Tive que cursar um ano de admissão , só entrando para o ginásio em 1957. Fato que só se tornou viável graças a interferência da minha professora primária, Zilda Garcia, na foto comigo, que também ensinava nesse estabelecimento educacional e convenceu meus pais das vantagens de eu ir para um colégio, que tinha inclusive transporte para condução das alunas, sendo a partir do segundo ano primário somente feminino. Nesse mesmo período meus irmãos, Pedro e Antônio Rafael, passaram a estudar no colégio Suíço Brasileiro, na Avenida Nazaré.
Ainda morávamos na primeira casa quando passei a frequentar o Colégio São Paulo. Eu lembro do ônibus escolar indo me apanhar. O primeiro dia nunca me saiu da cabeça. Quando a condução passou na esquina de casa, parecia que ia me levar para muito longe, senti as lágrimas rolarem. Também foi só no primeiro dia! Passei a amar o colégio, as colegas, os estudos e  alguns mestres e religiosas angélicas.
Na ocasião não tive consciência da importância de ir pra aula na condução do colégio. O ônibus inicialmente, depois uma camionete, andava pela cidade para apanhar outros alunos por lugares que nunca tinha frequentado. Novos bairros, novas ruas, foram abrindo para mim o horizonte da cidade e estimulando amizade com outras alunas que não apenas as de minha turma. Usei a condução do colégio até o término do ginasial, já então morando no casarão, Av. São Jerônimo 267, um quarteirão anterior à primeira casa, de número 334. Ao cursar o pedagógico, única opção oferecida pelo colégio das angélicas para o colegial, passei a ir em companhia de colegas que moravam no mesmo quarteirão, entre Rui Barbosa e Benjamim Constant, e que tinham carro e motorista, primeiramente com Abelina Vidueira Antonio José, alternando com as irmãs Anete e Margarida Cruz. Agora já não fazíamos o passeio pela cidade, o caminho era direto entre nossas casas na São Jerônimo e o Ginásio São Paulo, na Serzedelo Corrêa.
Nossa turma era amiga e estudiosa, tendo sido no primeiro ano do curso Normal acrescida de novas alunas, moças carentes, que precisavam regularizar seu curso pedagógico para exercerem a docência. As fotos em conjunto mostram na primeira a turma com uniforme de diário na área de esportes e na segunda com o uniforme de gala no dia da colação de normalista. Único dia em que o uniforme foi usado, já que o colégio da Serzedelo encerrou suas atividades nesse ano, formando apenas uma segunda turma de professoras normalistas. A unidade da Antonio Baena ampliou, mais tarde, seu atendimento para crianças também de classe média e permanece até hoje no mesmo local, com reconhecimento da qualidade de ensino.
Meus pais eram espíritas mas me matricularam em um colégio administrados por irmãs católicas. Participava, como as demais alunas, das aulas de religião, assistia as celebrações religiosas e executava bordados nas aulas de trabalhos manuais em panos que iriam enfeitar a capela do colégio. Mas havia certa reserva para comigo por parte de algumas das religiosas. Certa feita, a que ensinava Religião chamou-me à parte e questionou meu comportamento durante as aulas, que para ela era inadequado, pois achava que eu ficava com um ar de dúvida, sorrindo, como quem não acreditava no que ela dizia. Tomei um susto e fiquei magoada, pois fazia tudo para agradá-la, inclusive bordando panos para capela. Nunca tive a intenção de fazer galhofa com seus ensinamentos. Muito pelo contrário! A prova disso e que como tinha uma memória prodigiosa, facilmente consegui me classificar para representar o colégio no VI Congresso Eucarístico Nacional-CEN, obtendo o segundo lugar entre os demais candidatos das escolas concorrentes em Belém. Perdi pontos por não dominar o ritual da missa, que até então não frequentava. O VI CEN ocorreu na Praça do Congresso, hoje Waldemar Henrique, entre os dias 15 a 21 de agosto de 1953, sendo um fato importante na história da cidade, a ser relembrado em 2016, quando entre as comemorações do quarto centenário da cidade, ocorrerá o XVII CEN, entre os dias 17 a 20 de agosto, agora com o tema “Eucaristia e Partilha na Amazônia Missionária”, centrado principalmente no Estádio do Mangueirão.

 Outro fato que denota o preconceito das religiosas para comigo aconteceu quando já tendo concluído o pedagógico, telefonei para uma das irmãs, a secretária, uma das que eu mais gostava, a fim de solicitar a documentação para prestar vestibular na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal do Pará, para o curso de Ciências Sociais. Ela me respondeu: - pense bem, a gente não pode dar o que não tem. Fiquei tão magoada que me afastei por completo do colégio, não mais procurando as irmãs. Nem mesmo quando passei no vestibular ou quando poucos anos mais tarde, em 1966, me batizei, após realizar vários encontros catequéticos com Cônego Nelson, então pároco da Igreja de Santana.

Os Casarões de Minha Vida - A Casa dos primeiros 10 anos: recordações e mudanças

Os Casarões de Minha Vida
Casarão São Jerônimo 267
28 de Setembro 982















1. A Casa dos primeiros 10 anos: recordações e mudanças


Morei na Avenida São Jerônimo desde quando nasci, em 1944, até o ano em que casei, 1968. Ainda que a rua tenha tido seu nome alterado para Governador José Malcher, quando eu tinha doze anos, em 1956, nunca consegui assimilar tal troca. Continua sendo para mim, eternamente, a Avenida São Jerônimo. No decorrer destes quase 24 anos em que lá morei presenciei várias transformações nos costumes e hábitos da cidade.
Nos meus primeiros 10 anos de vida, moramos em uma casa entre as Travessas Quintino Bocaiúva e Rui Barbosa, onde hoje é o Edifício João Cardoso Figueiredo. Lembro das carroças com vasilhames de leite vendendo diariamente de porta em porta o líquido freco oriundos das vacarias espalhadas pela cidade; recordo dos carrinhos de mão que em junho perfumavam a cidade oferecendo ervas para os banhos de cheiro e coroas juninas para nos coroarmos; das carrocinhas que recolhiam os cachorros que vagavam sem dono pelas ruas e que se não procurados seriam queimados no forno crematório, existente na Alcindo Cacela, Bairro da Cremação. Todos costumes que já não exitem. A rua era o lugar de reunião da criançada, para o passeio de bicicleta, de patins, das brincadeiras de bonecas e seus instrumentais para as meninas e dos revolveres de espuleta, espingarda de chumbo, ou baladeira para os meninos, exibidos orgulhosamente quando ganhos no Natal ou nos aniversários. Eu nunca tive bicicleta, meu pai achava imprópria para meninas. Meus dois irmãos mais velhos tinham, minhas primas que moravam em frente a nossa casa, também. Assim aprendi a andar na bicicleta dos outros, mas sem muita destreza. Nas calçadas fazíamos os desenhos para pular macaca, brincar de cemitério, jogar bola de gude (petecas) com os meninos e brincar de roda com as meninas. A vizinhança se conhecia e se curtia, principalmente as crianças e os pré-adolescentes. Os dois quarteirões eram compostos de casas residenciais e mercearias, uma em cada quarteirão, na esquina da Rui Barbosa, O Combate, existente até hoje e na esquina com a Quintino Bocaiúva, a Mercearia Ninho, que atendia pedidos, a crédito, pelo telefone e mandava deixar em casa. Neste perímetro moravam algumas pessoas depois ilustres na história da cidade, o Coronel Alacid Nunes, em frente à casa de sua futura esposa, Marilda, da família Abel Figueiredo e ao lado da família de Machado Coelho. Estas casas encontram-se ainda hoje preservadas. Chamava atenção na esquina da Rui Barbosa, o conjunto de vários casarões de dois andares que lá permanecem, conforme se observa na foto retirada de postagens no face. Mais próxima a nossa casa outras famílias e pessoas que ainda lembro: Leônidas Figueiredo e Amaral Costa; João Figueredo que mais tarde compra a casa em que morávamos e constrói o edifício que leva seu nome, os Viana, Hélio e Siussi Mokarzel, Célio Lobato, Hildemar Tamegão Lopes e Alexandre Yamanuchi.
O que mais retenho na memória deste período é nossas brincadeiras de criança na calçada, ou dentro de casa, jogando peteca ou bola com meus dois irmãos, muitas vezes trazendo prejuízo e quebrando vasos que ficavam no corredor, então nosso campo de futebol, ou brincadeira de boneca com minhas tias quando estas estavam em casa. Geralmente, em função do prejuízo ou de alguma desobediência ou malcriação, nosso castigo era escrever linhas, tipo “Não devo desobedecer minha mãe”, umas quinhentas vezes.
O fato político do período em que moramos na primeira casa que trago gravado na memória é um comício no Largo do Redondo, esquina de Nazaré com Quintino Bocaiúva. Portanto, em uma das esquinas do quarteirão em que ficava nossa casa. Início da década de 50, concorrendo à eleição para governo do Estado o General Magalhães Barata (PSD – Partido Social Democrata) e General Zacarias de Assumção (UDN – União Democrática Nacional). Ficamos todos em casa, três crianças, eu e meus dois irmãos, com uma empregada, e meus pais foram assistir o comício. Eu era muito criança, seis anos, mas lembro do medo que ficamos quando ouvímos os disparos de armas e o barulho de correria na rua. Quando nossos pais chegaram soubemos que um rapaz fora atingido por uma bala perdida da polícia e que na correria para fugir do tumulto e preocupados com as crianças que haviam ficado em casa, minha mãe caíra, tendo meu pai dificuldade de protegê-la para não ser pisoteada pela multidão que se deslocava na mesma direção, da Avenida Nazaré para a São Jerônimo, pela Quintino. O estudante atingido foi Osvaldo Caldas Brito, aluno do Colégio Estadual Paes de Carvalho que saíra do colégio com colegas para assistir ao comício e que veio a falecer com o incidente. Tal fato teve enorme repercussão, contribuindo para a derrota de Barata ao Governo. Lembro do símbolo usado na campanha, a chinela, e dentre as marchinhas carnavalescas que marcaram a disputa entre os dois políticos:
“Oh! xente que bicho é este
É o Barata
Oi, pega na chinela e mata”

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Primeiros Registros, me situando ...


Nasci no ano anterior ao encerramento da Segunda Guerra Mundial, 1944, no dia em que se festeja a Justiça e o Dia do Estudante e seu célebre calote nos restaurantes. Sou bisneta de avós portugueses casados com mulheres do interior paraense, como era costume na época, de acordo com trabalhos de Cristina Cancela e Daniel Barroso sobre casamentos portugueses em uma capital da Amazônia. Contam eles que registros do recenseamento de 1872 e de 1920 demonstram  que 12% e 7,5% respectivamente  das pessoas morando em Belém eram estrangeiras, com 80% destas no primeiro caso e 68% no segundo, sendo de origem portuguesa. Em relação a gênero, do total de homens portugueses, no período de 1908 a 1920, apenas 25% casou-se com uma conterrânea, havendo nítida preferência por mulheres paraenses, geralmente vindas do interior. Possivelmente por serem mais brejeiras, mais amorosas e sabendo preparar deliciosos pratos.
Meus pais tiveram sete filhos, de acordo com a média, na época. Os três primeiros com intervalo de um ano mais ou menos entre nós, depois de passados cinco anos vieram mais quatro. Apenas duas mulheres, eu no primeiro grupo dos três e minha irmã, Lena, no segundo grupo dos quatro. Meu pai falava que gostaria de ter tido um time de futebol, onze filhos homens. Mais tarde, creio que mudou de opinião, quando percebeu o cuidado e carinho mais próximo das mulheres. Amava meu pai, sem questionamentos e julgamentos, ainda que percebesse ou ouvisse histórias de seus deslizes como marido e seu excesso de autoridade em nossa fase da infância e adolescência. A vida lhe atribuiu responsabilidades para com outras crianças e jovens, irmãos, sobrinhos e cunhadas, que deve ter contribuído para seu excesso de zelo e vigilância para conosco.
Se de um lado esse excesso nos tolia e de certa forma aprisionava, de outro, procurava ele compensar levando-nos a passear, a ir ao cinema quase que diariamente.  Já eu casada, comentou certa vez, que saíamos com frequência para eu não ter tempo de pensar em namorar. Nesse sentido, funcionou, pois tive meu primeiro namorado, meu primeiro beijo, já com 18 anos e cursando faculdade. Não que amores platônicos não tivessem ocorrido antes, com vizinhos, primos e amigos. Situação inimaginável hoje.
Cinema quase toda noite, se não era época de prova. Olímpia, inclusive vesperais de sábado à tarde, Independência, na Magalhães Barata, Moderno, Nazaré, Iracema e Poeira, ao redor do Largo de Nazaré e mais tarde o Cine Palácio na esquina da Manoel Barata com a Presidente Vargas, no térreo do Edifício Palácio do Rádio. Muitas vezes íamos só nós dois. Mamãe não curtia muito e ficava com os outros filhos, quando o filme era proibido para menores. Algumas vezes, meu pai levava para passear meus primos, que cedo ficaram órfãos e meus  dois irmãos mais velhos. Sentia-me como a Branca de Neve com os sete homenzinhos, não anões, passeando no Bosque, conforme registrado na foto.

Tio, primos e irmãos passeando no bosque. Da esquerda para direita: tio Adriano Gomes, os primos Rafael Luiz, José Afonso, Joãolino e Pedro Malaquias e os irmãos Pedro José, Auriléa e Antonio Rafael.

Do lazer de minha infância que ficaram registrados em minha memoria destaco as brincadeiras com vizinhos nas calçadas da Av. São Jerônimo; os cinemas; meu álbum de artistas, com lugar de honra para meus amores infantis, Gregory Peck, Tyrone Power, Marcelo Mastroiani, Paul Newman, Rock Hudson e Alain Delon, entre outros; na quinzena da festa do Círio, o Arraial de Nazaré e seus brinquedos maravilhosos, com registro para o Carrossel, conforme minha foto com meu pai e, na época, meu irmão mais novo, Antonio Rafael, os que circulavam apitando com o nome dos clubes de futebol, a roda gigante e os jogos de sorte e tiro ao alvo.
Pedro Gomes com seus filhos Auriléa e Antonio Rafael no Carrossel do Arraial da festa do Círio de Nazaré.

As barracas de comida com pratos regionais , depois, nossa alegria. Na época o destaque maior era pra tartaruga que ainda não tinha sua comercialização proibida. Com toda a variedade de pratos que oferecia, sarapatel, feito dos miúdos e sangue; sarrabulho, uma farofa com raspas do material do casco; picadinho e guizado com batatas. Várias vezes, quando criança e adolescente, assisti a morte cruel deste quelônio, que tinha um arame enfiado pelo rabo, para espixar o pescoço que então era degolado, ficando a pulsar, como se ainda houvesse vida naquela cabeça, enquanto o sangue era aparado para compor o prato de sarapatel. A torcida era grande para que a tartaruga estivesse cheia de ovos, que poderiam estar ainda sem casca ou já completamente formados, a serem cozidos e disputados pelo delicioso sabor que apresentavam.  Também fazia sucesso o casquinho de muçuã, um pequeno quelônio, jogado vivo na panela, com água fervente, para
depois ter sua carne tirada do casco, com todo cuidado pra não deixar estourar o fel que amargaria a carne e que era servido no próprio casco devidamente limpo, coberto com deliciosa farofa. Nas barracas, se pedia com cuidado um casquinho de muçuã, com desconfiança pra não comer outra carne, inclusive bucho bovino, que muito bem temperado poderia passar pelo quelônio. Outros pratos cobiçados eram o casquinho de carangueijo, o pato no tucupi, o tacacá e outros sabores regionais maravilhosos. Já na adolescência, o que mais gostava era circular na praça e ser observada pelos rapazes que ficavam parados vendo as moças desfilarem ao som das músicas tocadas pelas bandas nos belos “quiosques” das esquinas e ir assistir aos shows de humor que ocorriam nos palcos da Rádio Marajora e do Cinema Moderno, que eu me lembre. Para cada noite, um vestido novo. E quase sempre, papai estava por perto!
No início da década de 80, o Largo de Nazaré é reestruturado para dar origem ao Largo Santuário, ficando separado em um terreno ao lado os componentes do antigo arraial, em uma provável tentativa de separar o religioso do profano. As pessoas que não viveram aquela época do Arraial de Nazaré não podem imaginar a diferença do que é hoje em relação ao parque de brinquedo do CAM. Em busca de uma religiosidade e com desculpas de maior higienização, acabaram com um símbolo da cultura da quinzena da Festa de Nazaré que não se reduzia à trasladação e ao Círio e era um festejo religioso e profano, mobilizando por quinze dias a capital e o interior do Estado

Arraial de Nazaré na praça Justo Chermont, antes de ser reestruturado na década de 80.