quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O Casarão da Avenida Nazaré e a figura de meus avós paternos

“Quando escrevo, escrevo por um impulso interior que me vem do insondável que cada um de nós trás consigo. Mas uma coisa eu digo a você: ontem nós falamos nas pessoas que ainda estão voltadas para o passado. E eu digo a você: não há ninguém que não faça sua volta ao passado ao escrever. Nós todos fazemos. Nós todos pertencemos ao passado. Todos nós. Queira ou não queira. É de uma forma instintiva. Nós todos estamos ligados muito mais aos nossos avós do que aos nossos pais.”

- In: Cora Política Coralina, 1984.
Rafael Fernandes de Oliveira Gomes

Ao sentir a necessidade de abrir meu porão de lembranças confirmei, não sem surpresa, o que já afirmava Cora Coralina, nossa ligação intensa a nossos avós. Mais surpresa fiquei ao constatar nossas ligações com o Bairro do Reduto. Na verdade, foi o querer descobrir e deixar registrada essa ligação, marcada em minhas recordações pela esquina da Rua 28 de setembro com a Travessa Benjamin Constant que me conduziu ao processo de descoberta. Pesquisando informações sobre a família nos registros de casamento arquivados no Centro de Memória da Amazônia, tive revelada uma grata surpresa. Meu avô paterno, Rafael Fernandes de Oliveira Gomes residia na Rua 28 de setembro ao casar com minha avó, Aurea Bayma, de Mendonça Gomes, em 27 de maio de 1916. 
Aurea e Rafael Fernandes de Oliveira Gomes
Minhas ligações com o Bairro do Reduto eram mais intensas do que eu imaginava! Não apenas por esse fato, mas ainda pela constatação nos Registro da Paroquia de Sant’Anna, às fls. 45, que aos dez dias do mês de julho de mil oitocentos e noventa e dois, foi batizado Raphael, filho legitimo de Raphael Fernandes Gomes e Raimunda Cantidiana d’Oliveira Gomes, nascido em primeiro de setembro de mil oitocentos e noventa e um. A mesma Paróquia em que anos mais tarde, eu já com 18 anos optei por batizar-me, desconhecendo esta história.
Pesquisando na Internet consegui saber através do Diário Oficial da União (DOU) de 24/08/1940, em sua página 18, Seção I, que meu bisavô, Rafael Fernandes Ferreira Gomes era natural de Portugal e havia nascido em 12 de outubro de 1861, filho de Manuel Fernandes Gomes e de Custódia Maria de Jesus. Estava resolvida a primeira questão que motivou minha decisão de escrever a história da família através de minhas lembranças e pesquisas possíveis, o desconhecimento do nome de meu bisavô paterno. Não apenas pela história da família, mas, e principalmente, pela sua ligação com a história do Bairro do Reduto e com a história da cidade de Belém. De acordo com a legislação vigente na época, o DOU declarava entre outras pessoas, meu bisavô Rafael Fernandes Ferreira Gomes, como cidadão brasileiro. Ele faleceu quatro anos depois, 1944, De seu primeiro casamento, com Raimunda Cantidiana, nasceram meu avô Rafael e os tios Mimi, Santa e Valdemiro e do segundo, com Mariana, as tias Ceci e Lourdes.
Meus avós, Aurea e Rafael tiveram sete filhos: Carlito, Maria Heliete, Pedro José, Raimunda Alice, Rafael Mário, Aurea Celeste, José Fernandes, Adriano Jorge. Não conheci os dois primeiros, já tinham falecido quando nasci. Vou me deter na figura de meu avós, deixo para um próximo texto o casarão de Nazaré, sua magia e nostalgia.
De acordo com depoimento da tia Celeste, seu pai, Rafael observava Aurea no caminho em direção à Escola Normal e um belo dia lhe entrega uma carta declarando seu amor e pedindo o namoro. Casaram em 1916. Com pouco estudo, minha avó Aurea tinha o dom da escrita, enviava aos filhos e netos cartas primorosas de amor, e de dor algumas delas. Foi companheira amorosa de meu avô que no meio de seu caminhar, provavelmente no final década de vinte, aderiu ao espiritismo, dedicando-se a seu estudo, sendo um dos fundadores da União Espírita Paraense, que chegou a presidir. Desenvolveu um profícuo trabalho divulgando a doutrina espírita e trabalhando em prol dos desassistidos e hansenianos dos leprosários do Prata e de Marituba. Atuou no comércio, seguindo a carreira de seu pai na empresa Ferreira Gomes Ferragista S/A, foi vereador em Belém, Diretor do Banco do Estado do Pará e Diretor da Seguradora Aliança Comercial. Minha avó garantia em casa a tranquilidade da família que além de seus filhos, agregava os três netos, Rafael Luiz, João Lino e Pedro Malaquias, filhos de sua filha mais velha precocemente falecida. Para esta garantia, a companhia sempre presente de sua amiga e acompanhante, conhecida entre nós como Ciloca. Sempre achei curioso que quando era preciso chamar atenção dos filhos mais novos ou dos netos, meu pai, Pedro José, na qualidade de filho mais velho era acionado. Este fato criava certa animosidade entre os irmãos e tios e sobrinhos mais garantia a tranquilidade para meu avô seguir seu trabalho junto aos desvalidos. Nunca soube de quem partia a convocação para meu pai intervir, mas desconfio fortemente que era minha avó que se socorria do filho e resguardava a figura do marido. Eu ainda criança acompanhei meu pai várias vezes ao seu ritual de diariamente tomar o café da manhã na casa de meus avós, após sua saída de casa para o casamento. Com o decorrer dos anos e os desencontros da vida este costume foi se rareando.
Meu pai, Pedro Gomes em uma abraço emocionado em sua mãe, avó Aurea, sob olhar atento e também emocionado do avô Rafael.
 Três anos antes de falecer, em 1979, meu avô deixou uma carta/testamento aos seus filhos, que encontrei entre os documentos de minha mãe. Tomo a liberdade de transcrever:

Meus queridos: Vos deixo a minha Paz e as minhas bênçãos. Durante toda a minha vida sempre vos aconselhei à compreensão e a harmonia entre todos. Não fui atendido. Agora, próximo da partida para espiritualidade, vos venho pedir ainda uma vez para que procurem viver amigos uns dos outros, já que estão envelhecendo e por isso mesmo mais sensatos. Este documento não é um documento vulgar, é uma mensagem derradeira que espero sabereis respeitar e receber tranquilamente e com serenidade por em prática. Todos os bens que recebi de Deus, na distribuição santificada de Sua Misericórdia, deixo para vocês, desde o dia em que vossa Mãe partir para a espiritualidade. Não faço partilhas temendo cometer injustiças e insatisfações de vossa parte. Espero que vocês mesmos saibam repartir criteriosamente. De uma coisa entretanto faço questão absoluta: não esquecerem jamais os bons conselhos que sempre vos dei e procurar seguir a vida de trabalho e honradez que procurei vos dar testemunho e que é a minha verdadeira herança.”

Claro que não foi fácil, muito desentendimento rolou. Família grande e casando três de seus membros com outros três da família Ramos nem sempre conseguiu seguir a orientação indicada.
Avô Rafael faleceu em sete de fevereiro de 1979. O Jornal O Liberal de 09 de fevereiro de 1979 publica a notícia do falecimento de meu avô sob a manchete: Fundador da União dos Espíritas foi sepultado:
Fundador da União dos Espíritas foi sepultado, foto publicada no jornal “O Liberal” de 09/02/1979.
”Falecido na última terça-feira, aos 88 anos de idade, foi sepultado ontem na necrópole de Santa Izabel, o Sr. Rafael Fernandes de Oliveira Gomes, um dos fundadores da União Espírita Paraense e que se tornou conhecido de todo o povo paraense através do programa radiofônico “A Voz da Terceira Revelação” que ultimamente era levado ao ar todos os domingos às 11h15min horas pela Rádio Clube do Pará. Espírita por vocação, Rafael Gomes, como era chamado entre a comunidade espírita do Pará teve seus funerais acompanhado por um elevado número de pessoas, tendo seu corpo sido velado na residência da família enlutada, à Avenida Serzedelo Correa, de onde saiu o féretro.
Reconhecido como médium curador e que tinha como protetores os espíritos dos médicos Bezerra de Menezes e Camilo Salgado, cujo túmulo no Cemitério de Santa Izabel é diariamente visitado, por dezenas de pessoas, Rafael Gomes, além de fundador da União Espírita Paraense, que foi presidente, fundou também nesta capital o Centro Espírita da Assembleia de Jesus, na Tavares Bastos e no início de suas atividades doutrinárias, foi membro do Grupo Espírita Rostaing, já extinto. Campanhas de fraternidade, de amparo à pobreza desamparada e de assistência aos hansenianos do Prata e de Marituba, marcaram a passagem de Rafael Gomes à frente da União Espírita Paraense e centenas de curas foram atribuídas ao poder de mediunidade da qual era possuidor.
Milton Mendonça, Afonso Monteiro, Lopo de Castro, Fernando Baía, se misturavam entre as dezenas de espíritas, políticos, e pessoas do povo que acompanharam os restos mortais de Rafael até o túmulo da família, numa cerimônia constante de preces espíritas. Rafael Mário, seu filho, se destacava entre os membros da família Oliveira Gomes que além de perder o chefe, perdeu aquele que era tido como líder espiritual religioso de muitos paraenses. Durante as exéquias, foram apresentadas várias preces de Divaldo Franco, conhecido espírita brasileiro, através de gravações.

Minha avó, a partir daí viveu esperando o momento do reencontro. Faleceu anos depois, em um 12 de junho, dia dos namorados. Tinha escolhido todos os detalhes de seu enterro, inclusive o buquê de violetas para levar em suas mãos.