Interessante ser convidada a
pensar o passado para um relato de memórias sobre a UFPA. Voltar no tempo um
pouco mais de quarenta anos e no esforço de recompor fatos e histórias vividos
ou presenciados perceber com mais clareza a importância da universidade na
oportunidade que oferece para o crescimento profissional e pessoal de seus
alunos, ainda que nem sempre ofereça as condições ideais para tal.
Prédio da Antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFPA, hoje sede da APAE, foto in 20 anos da UFPA |
Fiz vestibular para UFPA em 1963, para o curso de Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal do Pará, então situada na rua Generalíssimo Deodoro de Mendonça, onde hoje funciona a APAE – Associação Paraense dos Amigos de Excepcionais. A administração funcionava no prédio principal e os cursos no barracão nos fundos do terreno Era uma das faculdades que, ainda que em imóveis distintos, passaram a compor, em 1957, a Universidade Federal do Pará.
Era uma época de grande efervescência
política e cultural na universidade brasileira, com intensa participação dos
estudantes que contavam, em Belém, com uma sede onde era possível congregar os
vários diretórios acadêmicos. Situada na Avenida São Jerônimo, hoje Governador
José Malcher, a União Acadêmica Paraense – UAP, filiada a UNE – União Nacional
dos Estudantes, foi em 1 de abril de 1964, um dos primeiros alvos dos militares
aqui no Pará, sendo invadida, suas lideranças presas e a entidade extinta.
Entrei na faculdade pensando em
me tornar pesquisadora em Ciências Sociais. Até então, era possível ter o título
de bacharel e licenciatura nos cursos oferecidos: Ciências Sociais, História,
Geografia, Letras e Artes, Matemática e Pedagogia. Não pretendia ser professora
e sim me dedicar aos trabalhos de pesquisa, embora na época não soubesse bem
qual seria o caminho para consegui-lo.
Infelizmente, em decorrência do
golpe militar de 1964, as expectativas do que seria um curso para formar
pesquisadores em Ciências Sociais foram abaladas em seus alicerces: o curso
passou a formar apenas licenciados, não mais bacharéis – o que me fez pensar em
desistir; as abordagens teóricas passaram a ser transmitidas com receio,
descuidando de revelar aos alunos os diferentes olhares e as diversidades de
explicações sobre os fenômenos sociais. Predominava a visão sistêmica na Ciência Política
e a funcionalista na Sociologia, ousando a Economia Política avançar e lançar
luzes sobre a diversidade de correntes. O impacto na formação de um espírito
crítico nos estudantes, principalmente naqueles que não eram oriundos da escola
pública e que não tinham vivência, leitura, nem militância política foi
bastante comprometido, só sendo possível de ser recuperado anos mais tarde
quando a UFPA iniciou a dinamização da pós-graduação na área de ciências
sócio-econômicas, ainda no período dos governos militares.
Mas, paralela e
contraditoriamente o curso permitia olhar uma mesma realidade sobre os diversos
ângulos disciplinares das Ciências Sociais – dois anos de Sociologia com
Orlando Costa, dois anos de Ciência Política com Amílcar Tupiassu, dois anos de
Antropologia (Física com Armando Bordalo e Cultural com Napoleão Figueiredo),
dois anos de Economia, incluindo Economia Política, com Roberto Santos,
passando pela História Econômica Política e Social Geral, do Brasil e da
Amazônia e pela Geografia Humana. Ao mesmo tempo oferecia ferramentas para um
trabalho de análise e interpretação dos fenômenos, desde a Introdução à
Filosofia com Benedito Nunes, à Matemática e Estatística, com a síntese na
Metodologia e Técnica de Pesquisa com a Graça Landeira, que estreava na
docência universitária com a nossa turma.
As disciplinas de História
Econômica e Geografia Econômica eram cursadas em conjunto com os alunos da Faculdade
de Economia e Ciências Contábeis e Atuariais, que funcionava no prédio situado
na Avenida Nazaré, próximo á esquina da Dr. Moraes. Disciplinas como Didática,
Psicologia da Educação, Administração Escolar e Orientação Educacional,
oferecidas nos dois últimos anos, reuniam os alunos de todas as licenciaturas
da Faculdade, inclusive os do curso de Pedagogia, o que era viável devido ao
pequeno tamanho de turmas dos cursos.
Prédio na Avenida Nazaré onde, na década de 60, funcionava a Faculdade de Economia, foto in 20 anos da UFPA. Desconfio que o fusca branco estacionado em frente à faculdade era o meu 400. |
A turma de Ciências Sociais que
colou grau em 1966 era composta de apenas 10 alunos. O conjunto das turmas da
faculdade que se formou nesse ano foi de 48 estudantes, tendo os cursos de
Matemática, Letras e Geografia apenas cinco alunos cada. O curso de História
era o mais numeroso com 12 formandos e o de Pedagogia com 11. O pequeno número
permitia também a colação conjunta no Teatro da Paz, com todos os colandos no
palco, mais seus paraninfos e a mesa diretora.
Diplomandos da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras/UFPA de 1966 |
Cerimônia de Colação de Grau no palco do Teatro da Paz da turma de 1966, à esquerda os colando, à direita os paraninfos e ao fundo a mesa diretora |
O estágio obrigatório,
supervisionado pelo professor de Prática de Ensino, no caso da nossa turma, era
realizado no Colégio Augusto Meira. A Universidade não dispunha ainda de um colégio
de aplicação, que seria mais tarde o Núcleo Pedagógico Integrado – NPI. Os estágios para pesquisa dependiam do
interesse e da iniciativa dos alunos, não constando do currículo nem tendo
caráter de obrigatoriedade, mas era possível conseguir com algum dos raros
professores que desenvolvessem paralelamente à docência, atividades de pesquisa,
como os de Antropologia.
A Faculdade de Filosofia
comemorou em outubro de 1964 seu primeiro decênio com uma programação de
painéis promovidos pelos seus diversos cursos. Lembro ter colaborado com Professor
Roberto Santos no painel sobre “Alguns Problemas do Crescimento de Belém”. Ainda
que apenas apresentando o álbum seriado para o professor responsável pelo
painel, talvez aí iniciasse meu interesse e fascínio pelos estudos urbanos,
desenvolvidos mais tarde na pós-graduação.
Os cursos anteriores à reforma
universitária de 1968 funcionavam em regime seriado, o que possibilitava que
alunos de uma turma iniciassem e concluíssem o curso juntos, facilitando os
grupos de estudo, a formação de lideranças e criando sólidos laços de amizade
entre os futuros profissionais.
Amigas e companheiras de estudo, Maria José Oliveira e Silva, Heliana Lima e Auriléa Gomes com o paraninfo da Turma de ciências sociais, Prof. Roberto de Oliveira Santos |
É interessante constatar que a
formação generalista oferecida então pelo Curso de Ciências Sociais, apesar do
vínculo estreito com a licenciatura, forneceu a base que permitiria e
facilitaria o desenvolvimento de profissionais aptos para o diagnóstico,
planejamento e intervenção na realidade social, política e econômica estadual e
regional, muitas vezes enriquecendo e ilustrando com a prática o entendimento
dos conhecimentos teóricos a serem repassados na docência, estreitando os
vínculos entre pesquisa, ensino e extensão. Ainda que ameaçado de ser extinto
após o golpe militar pela perspectiva crítica que o curso oferecia, e com as
consequentes restrições de abordagem já comentadas, percebe-se que muitos dos
profissionais formados nessa época vão compor as equipes técnicas que se
constituíram nas células do sistema de planejamento então implantado no Estado
e na Região e que tem todo um apogeu com a teoria desenvolvimentista do período
dos governos militares.
Saindo em 1966, portanto antes da
Reforma de 1968, retornei como docente em 1974, depois de atuar por oito anos
na condição de técnica e pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Econômico
e Social do Pará – IDESP, então órgão de pesquisa e planejamento estadual, para
o qual fui convidada pelo professor Amílcar Tupiassu, passando por um contrato
de experiência e treinamento, junto com outros técnicos, todos economistas
recém formados que iriam compor equipes para implantar as unidades de
planejamento estadual (muitos dos economistas foram posteriormente trabalhar na
Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM). Ao retornar encontrei
a reforma implantada e vários cursos já funcionando no Campus do Guamá,
inclusive os da antiga Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, agora distribuídos
em quatro Centros Diversos: Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Centro de
Letras e Artes, Centro de Educação e Centro de Ciências Exatas e Naturais. O
que explica o fato do meu histórico escolar ter sido fornecido pelo Centro de
Educação, em 1973, com a assinatura de seu diretor, Antônio Moreira Gomes, enquanto
que no diploma consta a assinatura do Diretor em Exercício, em 1966, da
Faculdade de Filosofia, Professor Artur Napoleão Figueiredo.
Meus registros para o período
solicitado são, portanto, basicamente como aluna, ainda que ao retornar como
docente percebesse as alterações ocorridas com a reforma de 1968 e com a
mudança da maioria dos cursos para o Campus Universitário no Guamá.
Com o regime de credito, os
docentes dos centros de ensino básico como o de Filosofia e Ciências Humanas
passaram a enfrentar o desafio de ministrar disciplinas em turmas numerosas, que
reuniam alunos dos diferentes cursos de áreas correspondentes em seus primeiros
semestres de vida acadêmica. Em compensação, com o aumento do número de vagas
discentes e com a tentativa de flexibilização e otimização de resultados
juntando disciplinas de cursos afins em uma mesma turma, professores e alunos passaram
a contar com a possibilidade de escolha de horários para ministrar ou cursar as
disciplinas.
Procurou-se contraditoriamente
democratizar a universidade, aumentando o número de vagas, ao mesmo tempo em
que se criava o mecanismo para cercear a liberdade e o desenvolvimento da
crítica e da livre expressão de alunos e professores, impedindo ou dificultando
o desenvolvimento de futuras lideranças ou calando as lideranças então existentes.
No entanto, a busca de políticas
de desenvolvimento, a necessidade do governo militar de legitimar-se e de
valorizar a Amazônia, garantindo a integração regional, apresentaria reflexos
diretos na Universidade. Imporia a formação de técnicos gestores e planejadores
para pensar a região e seus estados e, como conseqüência, a revitalização das
Ciências Sociais e Econômicas, estimulando o desenvolvimento da pós-graduação
na área e dando origem, em 1973, ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos.
A contradição mais uma vez se
evidencia. Se por um lado, o núcleo de integração então surgido vai contribuir
para a formação de ideólogos do planejamento estatal, dando origem mais tarde
ao mestrado em Planejamento do Desenvolvimento, é o mesmo núcleo que vai
estimular a consciência crítica e instrumentalizar seus alunos para a busca do
planejamento alternativo, democrático e participativo.
Portanto, ainda que se
questionasse, como ainda hoje acontece, enclausurar-se a universidade em seus
muros, é claramente percebível a estreita relação existente, principalmente na
área de Ciências Humanas, entre seu elenco de cursos, seus conteúdos e as
políticas públicas desenvolvidas, contribuindo para formar profissionais, professores,
técnicos, pesquisadores e gestores aptos não só para planejar e executar as políticas,
mas também demandar, monitorar e avaliar as mesmas, seja do ponto de vista da
gestão estatal, seja através da busca de controle social por parte da sociedade
civil.